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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Trecho do discurso feito por José Saramago ao receber o Prêmio Nobel

Vale a pena ler
Uma declaração de amor aos avós, analfabetos, feita pelo Saramago ao receber o Prêmio Nobel de literatura.
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. As quatro da madrugada, quando apromessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se daenxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas decuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassezos meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois dodesmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, naprovíncia do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eramanalfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava aoponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar àspocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixodas mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos doenregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente debom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhosassim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nemretóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem,para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.
Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças depastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e corteilenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda deferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e atransportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas dassearas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho,panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveriade servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes deVerão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir osdois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela,certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre,era, para toda as pessoas da casa, a figueira.
Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anosdepois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paznoturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, edepois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eunoutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo,surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago,como ainda lhe chamávamos na aldeia.
Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando:lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas,zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumorde memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente meacalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de queeu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio aresposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas maisdemoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvezrepetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer,quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.
Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será precisodizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda aciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássarosme despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com osseus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a mantae, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda compalhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para aoutra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já apé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café compedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contavaalgum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre metranqüilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza".
Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muitosábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo dafigueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo emmovimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando omeu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim acompreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisanão poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta dasua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores emenores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo étão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer,disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho quetinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber agraça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da belezarevelada.
Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenhahavido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir comporcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena deir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morteo vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma poruma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver."


Fonte da imagem: elternclio.blogspot.com

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